Gerir para o desastre

Um pequeno guia com as melhores práticas para conseguir atingir o nirvana do desastre na gestão.

Podem-se aplicar estas regras a empresas, departamentos, ministérios, clubes, condomínios, ginásios, igrejas, obras públicas, bancos, teatros, produtoras, equipas desportivas, enfim, a todos os empreendimentos humanos colectivos. São regras testadas e com resultados comprovados. Agora mais do que nunca, devemos seguir estas regras caso desejemos garantir o desastre.

Não defina o âmbito. Menos ainda objectivos.

Nunca defina qual o âmbito de um projecto ou tarefa. Tome um cafézinho com as pessoas que consegue tolerar ou faça uma conferência por computador e faça uns tópicos num guardanapo. Não esqueça de deixar o âmbito indefinido e incompleto. De seguida saia da “reunião” e envie um e-mail a um colaborador com uma tarefa hérculea que tem de ser entregue “ontem”. 

Caso não consiga fazer isso convoque uma reunião por computador. Deixe as pessoas 1h à sua espera. Garanta que as pessoas chave no processo não estarão presentes. Indique tarefas a cada um dos presentes sem explicar o âmbito e objectivos a atingir. De seguida envie um powerpoint com 200 Megabytes com toda a teoria de gestão da universidade e com os gráficos que aprendeu no primeiro ano da licenciatura. Quanto mais desconexo o documento estiver da realidade e do âmbito melhor.

Nunca defina objectivos! As pessoas não devem trabalhar sabendo porque e para que estão a trabalhar. Menos ainda saberem que metas são esperadas.
Não estude as alterações ao ambiente de negócio, não se informe sobre evoluções tecnológicas.
Não defina indicadores, KPIs, nem prazos.
Caso o projecto implique investimentos não calcule o retorno do investimento (ROI).
Caso o projecto implique empréstimos (da banca, do Estado, de anjos financeiros ou outros) não os sustente em garantias sólidas mas em futuros especulativos (podem ser títulos, resultados ou até uma previsão do polvo que adivinha os resultados do mundial de futebol).
Assuma custos no projecto sem garantir que exista entrada em caixa de capitais ao ritmo que permita contrabalançar esse custo.

Com estas acções garantirá que o projecto é uma folha em branco e que cada um a preencherá como quiser.

Ligue a panela de pressão!

Este tópico é muito importante porque ele, só por si, é capaz de fazer o desastre chegar. É preciso garantir níveis patológicos de ansiedade. Comece por obrigar as equipas a trabalhar para garantir algo e, quando as tarefas estiverem concluídas, remova esse objectivo das definições do projecto.

Não esqueça de alterar uma vez por semana as definições do projecto.

Independentemente da sua função passe o seu stress a todas as outras pessoas. Se não estiver stressado pense em algo que o deixe mal disposto e agressivo.

Defina prazos de entrega sem falar com quem vai executar as tarefas.

Não deveria ser necessário mencionar que os prazos devem sempre ser “para ontem”. Nunca permita que as pessoas pensem que os prazos foram pensados com as equipas e que têm as suas necessidades básicas em conta. Nunca se esqueça que trabalha com “recursos”, as pessoas não devem pensar em si próprias como pessoas mas sim como coisas ou animais de carga. O prazo deve ser “para ontem” mesmo quando a entrega só é necessária daqui a seis meses.

Caso trabalhe numa organização que faz estimativas de prazos, incumba alguém que não tem qualquer relação com as tarefas de fazer as estimativas. Quanto piores as estimativas melhor. Não esqueça que os prazos anunciados devem ser sempre impossíveis.

Atribua sempre demasiadas tarefas desconexas às pessoas. Preferencialmente que envolvam ferramentas ou tecnologias completamente diferentes. Faça um esforço para que essas tarefas desconexas sejam de fases distintas de eventuais processos.

Grite várias vezes ao dia. Bata com objectos na mesa de trabalho ou noutras superfícies mostrando-se irado. Se o seu estilo não se enquadrar no histérico, ameace as pessoas de forma subtil. Em surdina, se preciso for. Um favorito é enviar e-mails com ameaças de despedimento.

Se seguir estas indicações garante que qualquer pessoa independentemente do nível que tenha apresentará um trabalho que é uma anedota.

Ignore a lei

Encare a legislação em vigor no seu território como orientações opcionais ou simplesmente ignore-a. O departamento jurídico e colaboradores que alertam para os riscos de actuar às margens da lei não produzem nada e são meros empecilhos que não o deixam trabalhar.

Nunca implemente processos. Menos ainda standards.

Já aqui referimos mas nunca é demais lembrar: mude as definições a meio do projecto. O projecto estava dimensionado para uma população de 100.000 pessoas? Passa a servir 250.000. O final estava previsto para Agosto? Passa a ser em Julho. O design já estava fechado? Faça-se outro.

Caso as suas equipas refiram standards redefina tudo para que nenhum desses standards possa ser respeitado.

Implemente múltiplos canais de entrada de pedidos nos seus serviços. Nunca se esqueça que deve evitar ordenar, organizar e prioritizar a entrada de pedidos nos seus serviços. Faça com que atendam em simultâneo um guichet, o e-mail, o telefone, as mensagens instântaneas, o blogue… não esqueça de nunca implementar sistema de senhas ou qualquer método de ordenamento.

Comande alterações por e-mail ou oralmente. Não esqueça de umas vezes incluir umas pessoas e de outras para o mesmo assunto incluir outras. É importante que a informação fique esquecida num e-mail de 1999 do qual ninguém se lembra excepto o “rato” que guarda tudo porque pode dar jeito para “tramar” alguém ou para não ser “tramado”. Para mais, dessa forma pode sempre responder com ar acusador “Mas você não lê os 5.000 e-mails diários?”

Faça configurar sistemas automáticos para encherem as caixas de correio dos colaboradores. Sistemas de acompanhamento de clientes, tratamento documental, monitorização, ticketing, todos são excelentes candidatos para lhe garantir que ninguém consiga acompanhar o ritmo dos e-mails. Caso alguém se queixe responda com ar superior que deviam ter criado regras de recepção de correio electrónico. Aproveite a dica para incentivar cada um a ter 400 regras definidas que já ninguém sabe o que fazem.

Se cada um tiver de encontrar um e-mail no meio de 100.000 items e 400 regras garante que mais cedo do que tarde alguma coisa vai correr mal.

Qualidade

Nunca inclua a qualidade nas formas de trabalho e comunicação. A qualidade não interessa em fase nenhuma dos projectos. O que interessa é ter alguma coisa para entregar no prazo que muda todos os meses independentemente do estado em que estão as pessoas das equipas.

Nunca permita que se utilizem as ferramentas adequadas para a execução de uma tarefa.

Nunca permita que os princípios de segurança e higiene poluam o ambiente de trabalho.

Nunca documente nada

Não permita que as pessoas documentem alterações, configurações, prazos, definições, localizações, datas, horas, reuniões, custos… nada!

Se mesmo assim for obrigado a isso, pelo menos obrigue as pessoas a usarem ferramentas de documentação desadequadas e ultrapassadas. Nunca as faça rever as documentações por cada alteração que se verificar. O preferível é mesmo usar o e-mail como sistema de documentação. Assim pode ajudar a garantir que a documentação fica perdida no meio de dezenas de milhar de e-mails.

Outra alternativa para ajudar a fazer as coisas falharem: crie uma bliblioteca ou uma directoria com centenas ou milhares de documentos sem nomenclaturas standard e desactualizados. Pode também dividir em múltiplas directorias com permissões de acesso obscuras e limitadas.

Castigue aqueles que tiverem o topete de usarem sistemas de documentação que funcionam. Não esqueça que também deve hostilizar as pessoas por usarem o tempo a manterem documentação. Caso exista uma equipa que use toda o mesmo sistema de documentação e partilhe a informação humilhe-os publicamente por esse facto. Nunca se deve permitir que a informação seja partilhada. Isso acaba com as pessoas a trabalharem juntas!

Formação

Se puder, não permita nenhum tipo de formação profissional.

Nem mesmo acções de formação por parte da própria organização e sobre a organização. 

Comece por não prever nenhuma forma de acolhimento e explicação sobre a organização.

A não existência de formação, é das melhores formas de garantir que processos e standards são desconhecidos e ficam desconhecidos.

Se tiver de aplicar standards e orientações internacionais faça-o como se de um martelo se tratasse.

Uma excelente forma de garantir que um projecto falha é ignorar a realidade e obrigar todos os colaboradores a seguirem orientações como se fossem leis. Não permita que ninguém adapte ou se desvie um milímetro das orientações mesmo que elas não se apliquem de todo à realidade que existe no teatro de operações. Se o standard exigir a transferência de centenas de documentos por dia para uma área composta por uma pessoa, faça-o. 

Trabalhe sozinho

Não esteja atento à concorrência. Especialmente se esta estiver a obter melhores resultados financeiros ou operacionais deve manter-se desinformado e ignorante do que é bem feito pelos concorrentes.

Disponibilize telefones, endereços de correio electrónico ou outros mas nunca os atenda ou entregue-os a quem demore 15mns ou mais a atender. Pode sempre criar um sistema de menus num IVR que seja críptico e enorme que obrigue quem contacta a desistir.

Não saia do seu gabinete ou da sua ilha. Comunique apenas por computador. E sobretudo ponha toda a gente a trabalhar sozinha. Certifique-se de que cada um deve trabalhar no seu canto. Não permita que as pessoas escolham o local de trabalho caso exista mais do que um local possível. É importante garantir que as pessoas não possam partilhar o seu trabalho e conhecimentos.

De preferência ponha toda a gente a trabalhar exactamente na mesma tarefa ao mesmo tempo sem que saibam que o estão a fazer. Mais tarde encoste-se e aprecie o caos e a animosidade criada quando todos começarem a apontar os dedos uns aos outros.

Se tiver de marcar reuniões marque várias por semana. Garanta que não existem tópicos definidos, nem objectivo para as reuniões. As reuniões não devem servir para definir acções apenas para gastar tempo desnecessariamente.

Hostilize e tente livrar-se de pessoas que trabalham com várias pessoas ou que se dão bem com várias pessoas de equipas diferentes.

Insulte diariamente os colegas que não conhece apenas porque trabalham noutras equipas ou noutra sala. Faça isto em frente aos colegas da sua equipa que têm relações com os insultados.

Se se deparar fisicamente com pessoas nunca diga “bom dia”. Caso lhe digam os “bons dias” nunca responda. Caso se cruze com alguém olhe para longe através da pessoa com olhar embaciado ou olhe para o chão como se lhe tivesse falecido um familiar. Se puder, vire as costas e ande na direcção oposta.

Crie uma cultura de vigilância e intimidação sobre todas as pessoas que entrem em contacto consigo. Depois de criar o seu sistema de vigilância (dica: as ferramentas informáticas são um maná dos céus para isso), implemente uma cultura “politicamente correcta” em que qualquer pessoa pode ser acusada de ser racista, sexista, xenófoba, desadequada, desactualizada. Acuse várias pessoas. Aumente a cultura de ataque pessoal da empresa até esta se tornar um culto. Assim garantirá que todos trabalharão sozinhos.

Lembre-se, o mundo inteiro está errado, você está certo. Se for necessário tire 30mns por dia para repetir em frente ao espelo: “Sou o maior, sou o maior, sou o maior!!”

Pense as pessoas como coisas (ou “recursos”).

Recrute as pessoas erradas. Faça o jardineiro mudar a canalização, o informático tratar de aspectos administrativos, a secretária ficará encarregue de decisões tácticas, o porteiro fará o trabalho da secretária, etc, etc.

Baralhe as pessoas no acto do recrutamento. Pode fazê-lo omitindo aspectos relevantes do contrato de trabalho ou das regras da empresa mas a melhor forma é mesmo mentir sobre aspectos importantes. Prometa um contrato de trabalho e um mês após a pessoa estar em funções diga que foi engano e que o trabalho é a recibo-verde.

Faça uma entrevista de recrutamento para um tipo de funções de coloque a pessoa a trabalhar em funções bastante diferentes.

Recrute pessoas que não se dão com ninguém, quanto mais tóxicas melhor. Obrigue-as a trabalhar juntas. Basta uma numa equipa, realmente. Mas procure pelo menos uma por equipa para obter melhores resultados.

Faça as pessoas trabalhar sessenta horas por semana (nem pense em pagar horas extraordinárias). Quando as pessoas já não tiverem vida pessoal, familiar ou social começarão a cair para todo o lado. Mas não páre por aqui. O pináculo de qualquer projecto é conseguir hospitalizar alguém.

Obrigue um junior a fazer o trabalho de um senior e pague-lhe como a um estagiário.

Retire funções a uma pessoa sem a avisar. Ela deve ficar a saber de preferência por quem ficou com as suas funções.

Fofoque e difame as pessoas em conversações electrónicas e de corredor.

Humilhe e rebaixe outras pessoas em público, especialmente se fizeram um bom trabalho ou sem motivo para tal. Se for mesmo obrigado a elogiar alguém (evite isto ao máximo) faça-o no decoro de uma sala privada com paredes e porta à prova de som.

Pressione as pessoas a voltarem ao serviço a meio das férias. Aplique esta técnica especialmente se souber que as férias são em Timbuktu e que custaram 10.000 euros. Repita todos os anos.

Utilize expressões como “recursos”, “coisas”, “substituíveis”, “dispensáveis”, “animais”, “mamíferos”, “burros”, “idiotas” e similares para referir as pessoas que devem trabalhar consigo. De preferência por escrito. Garanta que toda a gente sabe que usa esses termos.

Se, como foi sugerido anteriormente, já criou uma cultura de vigilância e controlo e “politicamente correcta” sobre as pessoas dê o passo seguinte e introduza “valores” como “estamos nisto juntos” (ninguém quer ser a ovelha que abandona o rebanho), “o cliente tem sempre razão” (nem que seja necessário abandonar a própria família para o cliente ter alguém com quem falar ao Domingo), “patriotismo” (quem se recusa a deixar tudo pela pátria?). Mais uma vez, aumente a cultura da empresa até esta se tornar um culto (na linguagem moderna, um movimento) e veja como terminam as seitas e os cultos. Em desastre.

Use a lei para não permitir que as pessoas possam ir a um funeral de amigos ou familiares.

Use a lei para não permitir que as pessoas visitem amigos ou familiares hospitalizados.

Aceite e incentive uma cultura de assédio moral (pode usar o ângulo da orientação sexual, da raça, do género, do estado civil, da idade, da classe social, da indumentária, da higiene pessoal, dos passatempos que as pessoas têm, das baixas apresentadas, pode enviar e-mails a solicitar trabalho urgente às 2h00 a pessoas que têm família, ou cujo horário de trabalho é das 9 às 17h… seja criativo: pode combinar várias características para assediar ou pressionar as pessoas).

Aceite e incentive uma cultura de assédio sexual.

Use tecnologias da informação, porteiros ou seguranças para assediar as pessoas. Use os sistemas para criar históricos e acumulações de “incumprimentos” para que possa sempre, em qualquer altura e momento, ameaçar as pessoas de despedimento ou com processos internos, caso a lei do seu país não permita despedir.

Culpe sempre os outros

Nunca assuma responsabilidade pelos seus erros. Especialmente erros de carácter ou de comportamento.

Sinta-se ameaçado e seja activamente hostil em relação a qualquer comentário ou opinião.

Crie e alimente uma cultura de premiar aqueles que estão sempre de acordo e que obedecem a qualquer ordem. Elogie estas pessoas por todos e quaisquer motivos. Caso seja necessário serão dóceis a arcar com responsabilidades ou a serem descartados.

Puna colegas e colaboradores por expressarem opiniões.

Dispense ou despeça pessoas produtivas (mesmo os mais produtivos faltam, vão ao médico, são chamados pela escola dos filhos, têm avarias no automóvel ou mota, apanham greves de transportes públicos, precisam ajudar alguém fora do trabalho, são chamados a um tribunal... registe todos esses "incumprimentos" e use-os como justificação. Se não tiver nada por onde pegar ligue o lume sobre a pessoa e pressione até a pessoa já não aguentar mais e pedir demissão).

Se seguir esta cartilha verá que conseguirá espectacularmente fazer falhar qualquer projecto.

 

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